Uma vez na rua, todo travesti é considerado marginal perigoso, sem nenhuma chance de provar o contrário. Pode ser preso a qualquer momento, agredido ou assassinado por algum psicopata, que nenhum traseunte moverá um dedo em sua defesa. " Alguma ele deve ter feito para merecer ", pensam todos.
Levado para a delegacia irá parar numa cela masculina. Como conseguem sobreviver de sainha e bustiê em celas com 20 ou 30 homens, numa situação em que o mais empedernido machão corre perigo, é para mim um dos mistérios da vida no cárcere, talvez o maior deles.
A condição de saúde dos travestis é precária. Não existe um serviço de saúde com endocrinologistas para orientá-los a respeito dos hormônios femininos que tomam por conta própria.
Muitos injetam silicone na face, nas nádegas, nas coxas, mas sem dinheiro para adquirir o de uso médico, fazem-no com silicone industrial comprado em casa de materiais de construção, injetados por pessoas despreparadas, sem qualquer cuidado de higiene. Com o tempo, esse silicone impróprio escorre entre as fibras musculares dando origem as inflamações dolorosas, desfigurantes, difíceis de debelar.
Ainda os portadores do vírus da Aids encontram algum apoio e assistência médica nos centros especializados, locais em que os funcionários estão mais preparados para aceitar a diversidade sexual. Nos hospitais gerais, entretanto, poucos conseguem passar da portaria, barrados pelo preconceito generalizado, praga que não poupa médicos, enfermeiras e pessoal administrativo.
Os hospitais públicos deveriam ser obrigados a criar pelo menos um posto de atendimento especializado nos problemas médicos mais comuns entre os travestis. Um local em que pudessem ser acolhidos com respeito, para receber informações sobre uso e complicações de hormônios femininos e silicone industrial, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e práticas de sexo seguro.
A saúde pública não pode continuar dando as costas para essa minoria de homens, só porque eles decidiram adotar a identidade feminina. Direito de qualquer um. Quem somos nós para condená-los?
Que autoritarismo preconceituoso é esse que lhes nega acesso à assistência médica, direito mínimo garantido pela Constituição até para o criminoso mais sanguinário?
Dráuzio Varella- Médico oncologista. É autor, entre outros, do livro " Estação Carandiru "(Companhia das Letras), que recebeu o Prêmio Jabuti em 2000.
Fonte: Folha de São Paulo, publicado aos 14 de abril de 2009.
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